Por Nathan Facundes, Gerente de Desenvolvimento de Negócios da Fundação Ezute
Você já parou para pensar no impacto que o bilhete único pode ter na vida de milhões de brasileiros? Mais do que um meio de acesso ao transporte público coletivo, os sistemas de bilhetagem eletrônica representam um elo estratégico entre tecnologia, eficiência e cidadania. Para compreender a relevância desse tema, vamos lembrar o que define o termo gestão pública: o conjunto de ações do Estado para administrar recursos e implementar políticas voltadas ao bem comum, sempre com foco em eficiência, legalidade e transparência.
Há 27 anos o Brasil teve seu primeiro Sistema de Bilhetagem Eletrônica implantado no município de Goiânia/GO, com o objetivo de resolver graves problemas de perdas devido a fraudes e assaltos. Com essa implantação muitas outras foram realizadas Brasil afora, o que viabilizou a redução de tarifas, a integração intramodal e intermodal e o fornecimento de diversos benefícios tarifários para a população. A Bilhetagem Eletrônica é e sempre será um marco na gestão do transporte público coletivo: além de promover benefícios aos usuários, propicia grandes oportunidades ao gestor público. Além da redução de perdas e recursos, obtidos pela digitalização, torna possível a monetização de recursos através do float financeiro da operação de bilhetagem de forma ampla. Este último, aliás, tem sido objeto de desejo e de diversas discussões de pouca publicidade junto à população. Segundo Pesquisa CNT Empresarial 91,4% dos municípios brasileiros contam hoje com Bilhetagem Eletrônica.
Há aspectos comuns entre os sistemas implantados nos municípios:
a. Soluções submetem o município à forte dependência tecnológica e de negócio, em especial aquelas vinculadas às empresas de validadores;
b. Dados, informações e conhecimento ficam restritos às empresas que detém a gestão e o controle da bilhetagem, dificultando seu acesso ao gestor público (caixa preta);
c. Baseadas em cartão (CBT – Card Based Ticketing), ou seja, o dinheiro encontra-se gravado no cartão contactless do usuário ao invés de ser mantido em uma conta corrente associada àquele usuário (ABT – Account-Based Ticketing);
d. Foco na gestão financeira da bilhetagem, em detrimento da gestão da demanda e da qualidade dos serviços prestados.
O histórico de sistemas implantados mostra que a Bilhetagem Eletrônica tem três pilares fundamentais, que devem ser mantidos de forma irrefutável pelo poder público:
1. A gestão dos recursos financeiros da bilhetagem;
2. A gestão do atendimento;
3. A gestão do cadastro de usuários do transporte público.
Entretanto, há questões doutrinárias que trazem diversas interpretações sobre o significado da palavra gestão pública no contexto desses pilares. Tais interpretações têm criado rachaduras de difícil solução, reduzindo cada vez mais a capacidade do órgão gestor de aplicar políticas públicas difusas e voltadas à melhoria da qualidade do transporte público àqueles que mais precisam.
Por mais que os contratos de concessão de Bilhetagem Eletrônica tenham foco no resultado, com indicadores bem definidos para qualidade e operação, os dados, informações e conhecimento são represados, gerenciados e enviados à vontade da concessionária, sem a devida transparência exigida e, por questões políticas, com pouca interferência do gestor público. Dessa forma: Como controlar e monitorar? Como gerenciar a demanda? Como melhorar o transporte público para aqueles que mais precisam? Essa é a realidade da grande maioria dos municípios brasileiros.
A governança dos dados da Bilhetagem deve ser do gestor público municipal em primeiro nível, não em segundo ou terceiro nível. Lidar com a integração entre as diversas soluções que compõem os Sistemas Públicos de Transporte é responsabilidade do ente público; ele é quem será cobrado diretamente pela ineficiência do serviço.
Do ponto de vista de um projeto, quando terceirizamos uma tarefa mitigamos um risco através da “compra” de uma eficiência esperada da empresa contratada. Se ela não atender bem aplica-se uma multa ou uma glosa.
Do ponto de vista do transporte público, em especial da concessão da Bilhetagem Eletrônica, isso não é tão simples. A população é diretamente afetada e a aplicação de multas e glosas à prestação de um serviço ruim não terá qualquer efeito sobre o sentimento do usuário que utiliza o transporte público. Essa é a realidade!
Um Sistema de Transporte Público Integrado contempla diferentes modais, operadores, planejamento, processos, infraestrutura e tecnologias que, de forma coordenada, trabalham em benefício do usuário, com soluções integradas e abertas. Independente do arranjo contratual da Bilhetagem, a gestão pública deve ter voz ativa no controle dos serviços, mantendo mecanismos eficazes de integração para a aquisição e tratamento dos dados dos diferentes sistemas disponíveis, incluindo o monitoramento, produzindo o conhecimento necessário para que ela própria possa aferir os indicadores de qualidade exigidos e os estudos necessários para a melhoria contínua dos serviços.
O órgão gestor municipal possui muitos outros desafios para garantir a integração dos serviços: lidar com múltiplos operadores, investimentos e/ou custeio para aquisição e atualização de infraestrutura, limitações legais, limitações tecnológicas (incompatibilidade de soluções), planejamento e replanejamento de itinerários, gestão tática e operacional da demanda, entre outros aspectos. Independente do arranjo contratual existente no município, o gestor público deve buscar soluções abertas e integradas, de forma a elevar a capacidade analítica de sua equipe, em prol da gestão da demanda e da qualidade do transporte público através da manutenção dos pilares fundamentais que orientam sua atuação na gestão do transporte público municipal.
Dessa forma, a bilhetagem deve cumprir o seu papel na gestão da demanda, evoluindo para uma plataforma estratégica de gestão da demanda para o transporte público coletivo. Nesse contexto, é preciso compreender que dados e informações de qualidade são a base para políticas públicas eficazes. O desafio que se coloca é transformar a tecnologia em um verdadeiro instrumento de melhoria da mobilidade urbana, materializando conhecimento e inteligência a partir desses dados e informações em benefício da população usuária do transporte coletivo nos municípios brasileiros.