GESTÃO DO CONHECIMENTO É FUNDAMENTAL

 

Velocidade das Mudanças Obriga as Organizações a Buscar Atualização Constante e Possuir Capacidade de Adaptação, Diz Executivo

Aos 55 anos, o executivo Eduardo Marson Ferreira acumula uma grande experiência em gestão nos setores de alta tecnologia, aviação e defesa. Por quase 14 anos esteve à frente das principais empresas do Grupo Airbus no Brasil, entre elas a Helibras, única fabricante de helicópteros da América Latina. Nesse período, conviveu com a euforia do “Brasil Grande” e com a crise orçamentária do governo Dilma Rousseff, com a construção e a desconstrução de grandes projetos nacionais. Até outubro passado esteve na presidência da Fundação Ezute, criada há mais de 20 anos como Fundação Atech para ser a entidade integradora da Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM), um dos mais ambiciosos programas de controle do espaço aéreo e defesa aérea do mundo à época. Com a experiência adquirida no SIVAM, a Ezute acumulou conhecimento que permitiu sua participação na concepção e desenvolvimento de outros importantes projetos civis e militares, como o Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz), o Bilhete Único de São Paulo, o sistema de combate dos submarinos do PROSUB e o SISFRON, Sistema de Vigilância das Fronteiras, que foi um dos temas mais citados durante a campanha presidencial por todos os candidatos. Hoje preside o Conselho Consultivo e Estratégico da Fundação, consolidando uma trajetória que, a par da função executiva, o qualificou como requisitado conselheiro profissional. Esse caminho foi iniciado com a presidência do Conselho da Associação Brasileira da Aviação Geral (ABAG) e com a participação em outras entidades do setor. Seus colegas de mercado sempre destacam como pontos fortes de Marson sua obstinação, o pensamento estratégico e a capacidade de montar e motivar equipes eficientes nas organizações por onde passou. Sobre o mundo da gestão da tecnologia, Marson Ferreira conversou com AméricaEconomia.

Acompanhe a entrevista:

AméricaEconomia – Você acumula grande experiência na gestão de projetos estruturantes de base tecnológica. Como foi seu envolvimento com esses processos de gestão estratégica e que lições você tirou para a sua trajetória como executivo?

Eduardo Marson Ferreira – Bem, após um início de carreira em comércio exterior e aviação, em 2003 fui contratado como CEO no Brasil da filial da EADS, conglomerado europeu aeroespacial e de defesa que era o resultado de uma série de fusões do final nos anos 90, início de 2000, dos ativos da Aerospatiale-Matra da França com a Daimler Aerospace alemã e a CASA espanhola. Naquela época o grupo, que já tinha uma implantação industrial no Brasil desde 1978, a fabricante de helicópteros Helibras, havia assinado um grande contrato de fornecimento de jatos Airbus para a TAM e estava negociando aviões de patrulha marítima e de transporte com a Força Aérea Brasileira (FAB). A legislação no país que tratava de contrapartidas, ou offsets, era bem recente, embora a FAB já tivesse exigido transferência de conhecimento de fornecedores de alta tecnologia no passado, como foi o caso do Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM). Mas, para mim, tudo aquilo era novidade. Lembro das negociações com a Força Aérea e indústrias brasileiras para transferir para o Brasil a fabricação de partes dos aviões, capacitar a indústria local a realizar a manutenção e, sobretudo, desenvolver sistemas sensíveis das aeronaves em negociação. O pacote tecnológico mais complexo naquele momento era o sistema de missão dos aviões P3 de patrulha marítima, cuja missão é detectar e engajar alvos na região do mar territorial de interesse nacional e de responsabilidade de busca e salvamento do Brasil, que vai até meio caminho daqui para a África. O software embarcado numa aeronave dessas é extremamente crítico para um país com mais de 8 mil quilômetros de costa, e uma riqueza enorme ali contida. E nem se falava de pré-sal ainda. Por razões estratégicas de salvaguardar o conhecimento desse software, o grupo teve que confiar o desenvolvimento desse programa a uma entidade local, a então Fundação Atech, que depois veio a ser a Ezute. São as coincidências da vida! Foi a primeira vez que percebi a importância estratégica de um programa de desenvolvimento de alta tecnologia e sua criticidade para o Brasil. E mais: foi quando me dei conta de que nossos engenheiros nada deviam aos europeus. Ao contrário disso, muitos desses profissionais acabavam convidados pelo grupo a ficar na Europa, e tínhamos que tomar extremo cuidado para que a matriz não “roubasse” nossos talentos, tão necessários naquele momento. A partir daí, praticamente todos os projetos em que estive envolvido até hoje incluíram transferência de conhecimento de ponta, procura e negociação com parceiros que receberiam esse conhecimento e a criação de centros de excelência em tecnologia no Brasil. Na Helibras, que eu vim a presidir depois, quando assinamos o contrato de fabricação no Brasil de 50 helicópteros H225M, o Centro de Engenharia da empresa tinha 9 profissionais. Como o acordo previa o desenvolvimento de versões no Brasil, algumas que nem existiam na Europa, tivemos que contratar mais de 60 novos engenheiros. O resultado foi tão positivo que passamos a fornecer pacotes de engenharia para outras empresas do Grupo Airbus. Acho que, como resultado para minha formação como executivo, ficaram o respeito pelo que se faz no Brasil em termos de desenvolvimento tecnológico, a experiência de ter que levar adiante projetos com profissionais da geração Y, os “millennials”, e a gestão de programas de longo prazo e de enorme complexidade técnica e financeira.

AE – Você falou muito nesses processos de aquisição de conhecimento. Quais os desafios para as organizações embutidos nos processos de absorção, retenção, transferência e transformação de conhecimento e tecnologia?

EMF – Em primeiro lugar, as organizações devem estar preparadas e aparelhadas para receber determinado conhecimento ou desenvolvê-lo a partir do zero, ou de um estágio preliminar. Não falo só de equipamentos, mas de material humano qualificado e recursos financeiros. Isso quer dizer que a organização, que pode ser uma empresa, centro de pesquisa ou o próprio governo, vai despender enorme esforço para chegar a um determinado resultado.

O que se vê, sobretudo em projetos do setor governamental, é que problemas orçamentários levam muitas vezes ao alongamento excessivo do prazo dos projetos, com consequente revisão de cronogramas, que pode chegar até a sua interrupção. A consequência mais óbvia de revisão de cronogramas e repactuação contratual é a dispensa de mão de obra e o fechamento de unidades de pesquisa e produção. Ou seja, um enorme desperdício de tudo o que foi investido para preparar a organização para receber e desenvolver tecnologias. Some-se a isso o desafio constante de manter na organização uma nova geração de profissionais caracterizada pela volatilidade de propósitos e objetivos e pela atração por atuar em ambiente de trabalho agradável e projetos estruturantes. Há que motivá-los o tempo todo para que o investimento feito neles não se perca junto com o conhecimento que acumularam. Toda organização hoje em dia, de qualquer setor, tem a obrigação de fazer a gestão do conhecimento, pois ele é um “valor” que não pode deixar a organização a cada troca de pessoal.

AE – Que mudanças de comportamento e até culturais são necessárias para que as organizações possam definir modelos institucionais de sucesso, com um sistema de capacitação dos colaboradores e uma gestão de conhecimento que visem o êxito?

EMF – Às vezes temos uma tendência a pensar que gestão do conhecimento é algo supercomplicado, que significa construir um repositório com todas as informações da empresa acessível a todos. Nada disso! Começamos por estimular as conversas entre as mais diversas áreas da organização, por mais díspares que sejam. Você do RH descobre que seu colega de Finanças tem problemas de natureza semelhante aos seus e já resolveu por um caminho que talvez lhe sirva. Quebrar as barreiras entre os departamentos, fomentar o diálogo constante e estruturado até na hora do cafezinho ou do almoço faz parte do sistema de gestão do conhecimento. Uma vantagem já percebida imediatamente dentro da empresa é a diminuição do retrabalho e o aumento do reaproveitamento de tecnologias, técnicas e meios que já foram anteriormente empregados, com consequente economia de recursos financeiros. Reinventar a roda é, por princípio, sempre mais caro! Quanto à formação dos colaboradores, é de interesse de qualquer organização investir constantemente em capacitação. Há tempo nos encontramos numa sociedade globalizada, baseada em conhecimento. Mas a velocidade evolutiva das tecnologias está cada vez maior, o que exige do profissional uma atualização constante, ou uma “reinvenção” até. A Internet das Coisas (IoT), a Inteligência Artificial (IA) e os Sistemas Autônomos, para citar algumas dessas novas tecnologias, vão destruir modelos de negócio e categorias de profissões inteiras que conhecemos hoje. Portanto, as organizações precisam estar sempre atentas à evolução de seu ambiente concorrencial, capacitando constantemente os seus funcionários para acompanhar o que acontece ao seu redor. Só para dar um exemplo, um sistema de Inteligência Artificial bastante conhecido, que foi adaptado para escritórios de advocacia, já é capaz de produzir uma peça com 70% de consistência jurídica a partir das premissas do caso em tela. A pesquisa de jurisprudência, doutrina e legislação, que demandava dias de estagiários de Direito, hoje pode ser feita em pouco tempo pelo Watson, da IBM. Tem aquela anedota do “dilema”, em que o Diretor Financeiro diz ao CEO: “E se a gente investir no treinamento do funcionário e ele for embora?” – e o CEO responde: “E se a gente não investir e ele ficar?”

AE – Qual o papel da implantação de controles e da atualização sistemática das práticas e procedimentos de gestão estratégica para garantir uma correta análise de riscos e uma eficiente capacidade de resposta às dificuldades?

EMF – É o que eu disse antes. A velocidade das mudanças é tão rápida que impõe às organizações constante atualização e um sistema robusto com procedimentos e melhores práticas, além da capacidade de adaptação. O problema é que a velocidade das mudanças tornou-se acelerada demais. A chegada do Uber, por exemplo, causou uma disrupção no confortável e secular modelo de negócio dos taxistas, que reagiram contra ele até com violência em muitos lugares. Mas se você pensar bem, a própria Uber já está investindo em sistemas mais disruptivos ainda, que acabarão com seu próprio modelo de negócio com motoristas de hoje: o carro autônomo e o Ubercopter. E isso não levará mais que alguns poucos anos. É alucinante! Nenhuma organização, empresa, associação, fundação, ou até um clube, por mais tradicional e longevo que possa ser, tem o direito de se sentir confortável num mundo que experimenta esse nível de mudanças constantes. E há alguns exemplos clássicos. O que é feito da marca Kodak? O que acontece com os sindicatos após o fim da cobrança da taxa obrigatória? Em que situação se encontram hoje clubes tradicionais paulistas como C.R. Tietê ou Jockey Club com a mudança no ambiente em que floresceram? Portanto, qualquer organização precisa construir um robusto sistema de planejamento Estratégico que possa estressar o modelo de negócio atual, identificar forças, fraquezas, ameaças, concorrentes, aliados, recursos disponíveis e proposta de valor. Esse planejamento tem que ser inserido em ciclos de revisão pela organização, para garantir que novas variáveis sejam introduzidas. Além disso, por mais óbvio e básico que possa parecer, a organização não pode prescindir de ter todos os seus procedimentos internos descritos, auditáveis e certificáveis! Isso porque, mesmo após tantos anos terem se passado desde a introdução do Sistema da Qualidade baseado nas normas ISO, ainda existem empresas que realizam suas tarefas baseadas em usos e costumes dos departamentos. Não contam com um sistema integrado como a ISO 9001. Toda organização atualmente tem que ter metas claras conhecidas de todas as partes interessadas, princípios e práticas éticos e sustentáveis, e ser vista pela sociedade como criadora de valor. Com tudo isso, aumenta muito a possibilidade de ela se perenizar.

AE – Por falar em ética, a Fundação Ezute é pioneira entre as organizações do Terceiro Setor na Certificação ISO 37001, o chamado “selo antissuborno”. Qual a importância disso para os negócios da Fundação?

EMF – A Ezute tem por objetivo melhorar a vida dos brasileiros através da aplicação de tecnologia de ponta na gestão pública. Portanto, o setor governamental é nosso principal cliente nas várias esferas: federal, estadual e municipal. Reforçar nossa governança, melhorando os mecanismos de controle e conformidade, acaba por ser uma questão de sobrevivência em um ambiente de negócios marcado por tantos escândalos de corrupção entre o público e o privado, e onde muitas fundações sofrem questionamentos. Para chegar à certificação, revisitamos os procedimentos contidos no nosso Código de Conduta e políticas associadas: anticorrupção, conflitos de interesse, brindes e hospitalidades e patrocínios e doações. Depois fizemos uma gap analysis do Sistema de Compliance e percebemos que ele era suficientemente robusto para pleitearmos essa certificação, que é bastante nova no Brasil e no mundo. Poucas empresas no país obtiveram até agora a ISO 37001 e aparentemente não passa de uma dezena de certificadas. Por isso, nos enche de orgulho ter obtido esse selo de conformidade. A obtenção de alguma forma de certificação caminha para ser a única maneira de se fazer negócios com o setor público. Estados como o Rio de Janeiro já exigem de qualquer candidato a fornecedor de bens e serviços em licitações a comprovação de implementação de um sistema de conformidade, e a melhor forma de se comprovar isso é apresentando uma certificação.

AE – Vamos falar um pouco de gestão pública. Que atributos são necessários para uma administração institucional competente e comprometida com racionalidade de recursos e o bem-estar social?

EMF – Uma das maiores dificuldades da administração é a falta de visão sistêmica dos problemas enfrentados nos mais variados campos do setor público. Isso causa um desperdício enorme de recursos humanos e financeiros, leva a decisões equivocadas e compromete o futuro do cidadão. Pensar sistemicamente é utilizar todas as disciplinas disponíveis nas ciências exatas e humanas para obter uma leitura o mais abrangente possível da problemática e propor uma resposta integrada. De que adianta, por exemplo, termos os melhores equipamentos médicos em um posto de saúde que esteja localizado em uma comunidade de baixa demanda, ou sem acesso físico para a população? Ou de que vale comprar um helicóptero para a polícia antes da formação de pilotos e tripulantes, ou antes de se verificar a infraestrutura para sua operação? Não há como responder aos principais problemas da população sem lançar mão de sistemas. Veja outro exemplo no setor de segurança pública: hoje é inconcebível imaginar a aquisição de viaturas de uma marca brasileira, drones coreanos, sensores americanos e câmeras chinesas se tudo isso não puder “conversar” entre si num grande sistema e gerar, em conjunto, Big Data que vai ser usado para melhorar a gestão da própria segurança, mas também do trânsito, da mobilidade e do planejamento urbano.

AE – Está otimista com o Brasil?

EMF – O professor Delfim Neto sempre brinca que um homem da idade dele não tem o direito de ser pessimista. Acho que, neste momento do Brasil, ninguém tem o direito de ser pessimista, pois precisamos como nunca tirar o país de um ciclo de recessão jamais experimentado pela população. Os sinais que se apresentam são muito positivos, com a clara retomada da vontade de investir por parte de empresas nacionais e multinacionais, e os nomes anunciados pelo novo governo para a área econômica parecem estar caindo no gosto do mercado, gerando estabilidade. Claro que os desafios são enormes para o presidente Bolsonaro, especialmente em relação às reformas mais importantes e urgentes para a modernização do país, como a tributária e a previdenciária. Aí será a prova de fogo, quando o governo tiver que entrar em campo para negociar com o Congresso Nacional. Penso que o sucesso do próximo governo estará diretamente ligado à sua capacidade de entender a máxima do pensamento sistêmico, formulada por Aristóteles: “o todo é maior do que a soma das partes que o constituem”. O país é maior do que os interesses individuais, que por vezes se disfarçam de interesses nacionais. Não podemos cair nessa armadilha.

Clique aqui para ler a matéria em PDF.

Pular para o conteúdo